Por que os processos de qualidade não se perenizam no Ocidente?

Extraído do livro “Diagnosticando a empresa viva”, 1996, autor Murilo Sampaio

E o fim da história chegou…!

Com frequência, os desafios geo-políticos habitam e ilustram os planos estratégicos das organizações empresariais. Comparáveis aos do tempo em que os estrategistas de Estado brincavam de fazer história com o poder belicista das grandes nações, os verdadeiros desafios de hoje parecem ser movidos pelo conhecimento que gera riquezas e bem-estar para o indivíduo, e menos pelo poder coletivo de Estado. Os desafios sempre foram econômicos, mas agora a intermediação da força de Estado parece ter ficado cara e circunstancialmente desnecessária. Por quanto tempo? Provavelmente o tempo de nossas vidas. Os desafios econômicos, diretos e públicos, parecem estar cada vez mais dependendo tão somente do sucesso das organizações. Das empresas.

Muitos buscam a excelência organizacional para vencer os desafios que se tornam quase só econômicos. E haja programas de qualidade total, processos de certificação, reengenharia, processos visando aumento de produtividade e uma infinidade de neologismos, para que as empresas declarem para todos que estão querendo mudar. Mas quase todas querem, no fundo, vencer apenas seus desafios, quase só econômicos. Não entendem que os desafios econômicos, desacompanhados do medo de guerras e ameaças coletivas, começam a se atrelar a um outro desafio, cuja universalidade transcende aos conflitos sociais: o desafio maior do autoconhecimento e de como conseguir conciliar seus próprios anseios às necessidades das organizações.

A ascensão dos desafios econômico-individuais

Os desafios econômico-políticos estão sendo, em boa parte, substituídos, não pelos desafios apenas econômicos, mas pelos desafios econômico-individuais, e um dos grandes problemas das organizações, é que elas teimam em acreditar que seus desafios devam ser apenas econômicos ou político-econômicos.

Até quando teremos de ver estatísticas referentes a programas de qualidade interrompidos, que visavam à excelência de seus produtos e à satisfação de seus clientes? Seja na Europa ou nos Estados Unidos, com menor intensidade no Japão, os processos de excelência são milhos que pipocam e perdem a força nos primeiros 36 meses, sendo descartados logo em seguida. O ponto principal para o fracasso é entender os desafios apenas sob a ótica econômica; e qualquer coisa importante, que não seja colocada em cifras, não desperta muito interesse do poder empresarial.

Para sobreviver, os processos de excelência precisam ter desafios econômicos, acompanhados de desafios antropológicos e pessoais. A razão não mobiliza plateias; desperta, no máximo, a atenção e desenvolve o intelecto. A movimentação econômica é o palco da razão contemporânea e jamais mobilizará espíritos por longos prazos. É o sentimento humano que mobiliza, e ele não precisaria estar sempre em posição antagônica aos desafios econômicos, como, aliás, tem sido até hoje na maioria das empresas.

A tecnologia seduz e multiplica nosso poder de produzir. Não podemos renunciar à sua utilização sob pena de desrespeitar as regras do jogo moderno e com isso nos vermos fora dele. Substituir a rotina, física ou intelectual, pela máquina pode ser uma forma natural de permitir ao homem viagens mais interessantes em busca de um sentido maior. A tecnologia, em grau superlativo, combinada com a pasteurização individual, pode formar um todo, tão extraordinário quanto desinteressante, criados que fomos, na tradição da cruz, do espírito e da carne.

Processos de qualidade

Os verdadeiros processos de qualidade a serem gestados e postos em prática precisarão equilibrar algumas variáveis: tecnologia, padronização e disciplina por um lado: gente, diferença e alegria pelo outro. Esses ingredientes, não contemplados inteiramente na receita japonesa, se forem bem dosados, poderão gerar por aqui resultados interessantes e até surpreendentes sob vários aspectos. Poderemos estar, acima de tudo, criando algo e não apenas copiando e insistindo em ignorar nossa porção tribal.

Ao longo da elaboração deste livro, tive a oportunidade de conviver com professores de administração de empresas e perceber a quase irritação de alguns deles quando o assunto começava a girar em torno das chamadas técnicas gerenciais, batizadas ultimamente com os mais variados nomes.

– O que há de novo nisso? Indaga-me, até hoje, um respeitado professor. Desde quando, não é o cliente, aquele que sustenta as organizações através da sua preferência? Quase indignado, o velho mestre continua e questiona a novidade, ao atacar mais outros dois pilares da qualidade total, (a educação e o treinamento e, em específico, a padronização nos métodos de trabalho) como se tais atividades não tivessem sido/ até hoje, preocupação das verdadeiras empresas.

Para cada abordagem preconizada nos compêndios e nas centenas de publicações a respeito de qualidade total, encontraremos literatura anterior preconizando algo semelhante com nomes diferentes, mas cuja essência pode ser até de maior valor. Gerenciamento da rotina e de suas ferramentas de controle, gerenciamento por diretrizes e seus desdobramentos, pequenos grupos de trabalho formando círculos, células ou time, métodos para planejar ações, enfim uma série de atividades que vêm ganhando importância e melhorando as organizações, são necessárias e responsáveis por um grande incremento na excelência das organizações. Não têm, no entanto, quase nada de novo, a não ser o nome e uma grande mudança conjuntural que testemunhamos.

Entre os diversos e interessantes exemplos podemos citar: para os iniciados em programas de qualidade, o espírito da melhoria permanente se traduz pela aplicação do famoso ciclo PDCA. Planejar (P), fazer (D), verificar (C) e analisar (A). Metas não atingidas servem para identificar problemas (C) que precisam ser analisados (A), ter suas causas levantadas e soluções apontadas (P), até que as respectivas aplicações (D) alcancem as metas desejadas. Ou seja, um método que ciclicamente promove a busca da melhoria em busca de algo, concebido como meta. Ora, o que é isso se não o beabá da dialética platônica, que se inicia com a tese (o planejamento e a mostra de uma ideia, P e D), sua contraposição através da antítese (verificação por um outro padrão, C) e a síntese que materializa o passo adiante (no caso, o derradeiro fazer, D)? A mudança conjuntural que vivemos, aliada a uma certa ignorância da história da administração e um leve enferrujamento intelectual do poder das empresas, fertilizam terreno para o surgimento de métodos gerenciais sob o camaleônico nome de qualidade. Se não entendermos a natureza dos desafios, o processo de qualidade, se a pequena e não se perpetua.

Durante muito tempo, no Brasil, com uma alíquota de imposto para importação quase infinita (já que a burocracia era tão vagarosa que a importação não passava de miragem), poucas foram as empresas que trabalharam preocupadas em satisfazer seus clientes. Muitas se obsolesceram, pois a semente da concorrência, que deveria traçar-lhes o perfil tinha sido deixada de lado. Muitos anos se passaram sem que elas próprias notassem a necessidade de refazer e repensar seus métodos de trabalho. Até hoje (e até o fim para algumas), as necessárias mudanças, para configurar uma empresa verdadeira não foram sentidas ou aceitas.

Empresas dependentes

Tais organizações atingiram a maioridade, mas nunca deixaram de ser dependentes. Não cresceram conceitualmente. Seus dirigentes, preocupados com o dia-a-dia, não tiveram tempo para captar as mudanças. Muitos, quando as captavam, não queriam ou não conseguiam mudar seus métodos de trabalho. Foi nesse ambiente, formado por empresas que não chegaram a ser empresas na sua plenitude, e que hoje se vêem diante de uma quase invasão de concorrentes em seus respectivos mercados, que a reação começou a se articular.

Mas como se deu na prática esta reação? Quase toda a reação foi puxada pela liderança da organização. Ela percebeu a necessidade de mudar, articulou a mudança e cobrou resultados. Em seguida, começaram as dificuldades. Desacostumadas a estudar, a continuar a aprender, muitas dessas lideranças, sem perceber, continuaram insistindo nos velhos hábitos rebatizados com novos nomes.

Utilizando ainda o Brasil como exemplo, é interessante notar que nosso país vem patrocinando uma verdadeira avalanche de programas que visam conferir maior qualidade às organizações. A partir de 1990, a União, os estados, os municípios, as autarquias, empresas estatais e empresas privadas, vêm procurando recuperar o tempo perdido nesse terreno, e muito tem sido feito. No entanto, o que preocupa é que tais processos de mudança não estejam indo ao âmago das questões e dos fundamentos. A cultura de obter resultado a curto prazo não é compatível com um processo verdadeiro de mudança na organização. Quando a tão falada qualidade total (nem tão bem entendida assim) parece ser coisa de japonês, muitas empresas vão-se consolar com a mera certificação de instituições, procuradoras das sociedades compradoras. Com isso é limitado o alcance de tais processos de mudança.

Lembro-me de uma certa feita, quando estive na Coréia e conheci as instalações de treinamento de TQC (Total Quality Control) para presidentes de organizações, que deveriam ficar internados durante uma semana a fim de que pudessem patrocinar seus processos de mudança, não só com o peso da responsabilidade do cargo, mas reciclando seu próprio conhecimento. Aqui, são poucos os presidentes que se disporiam a fazer o mesmo. Muitos se interessam pelo tema, mas poucos se dispõem a estudá-lo com a profundidade devida, deixando de refletir sobre suas próprias mudanças e as mudanças de suas organizações.

De uma forma geral, os desafios estão postos sob o signo da concorrência global e os dirigentes, em maior ou menor grau, estão preocupados e reagindo. Os resultados começam a aparecer, mesmo que ainda com incipiência. Por que então os processos de qualidade não chegam a empolgar por longo tempo como no Japão?

O caráter utilitarista, pouco sistêmico e superficial, tem sido o maior responsável pela frustração que processos de qualidade vêm gerando após dois ou três anos de implantação.
Apressados em obter resultados, muitos dirigentes não aprofundam os estudos sobre as diferenças culturais que demandariam novas percepções e adaptações sobre aquilo que não é universal. Agindo assim, potencializam tensões e recolhem resultados precários mais adiante.

Maiores pecados cometidos

Os maiores pecados são cometidos quando se iniciam processos de qualidade sem que a leitura sistêmica das expectativas seja feita. Cliente é rei e sempre será. Se não tivermos, no entanto, uma visão comungada com o acionista, se não formos capazes de mobilizar nosso empregado, estabelecendo com ele uma relação de qualidade, e se continuarmos a tratar nossos fornecedores de bens e serviços como meros agregados, a probabilidade de satisfazer nossos clientes se reduzirá bastante.

Se não fizermos essa leitura sistêmica, e começarmos a atribuir prioridades erradas, o ritmo das mudanças não será alcançado e todo o processo desandará, cedo ou tarde.
Se não percebermos que a reação de um indivíduo é uma mistura de duas porções, em que a primeira é de natureza universal, e a segunda de caráter tribal, e continuarmos a implementar programas educacionais e de habilidades sem um quê específico da organização, estaremos limitando o alcance dos mesmos.

Uma outra grande estrada a ser explorada, com o objetivo de ilustrar as diferenças entre as administrações das grandes empresas japonesas e suas concorrentes ocidentais, seria identificada pela concepção comercial de cada país. Aquilo que, recentemente, passamos a chamar de globalização econômica deixou de ser novidade para as empresas da franja asiática, há muito tempo. Todo país que não dispõe de recursos naturais se globaliza economicamente ou simplesmente não existe. Logo, o Ocidente, que passou a falar em globalização econômica após o fim da guerra fria, vem, com atraso de décadas, tentando estratégica, societária e operacionalmente se preparar para a atuação global. Não é à toa que os processos de fusão empresarial são muito mais frequentes nos Estados Unidos e mesmo na Europa do que num Japão mais ajustado e amadurecido. Nós, aqui, apenas damos os primeiros passos para nos globalizar, procurando formatações societárias menos frágeis do que as nossas.

Não é objeto deste livro o estudo dos métodos de trabalho da chamada qualidade total, nem tampouco avaliar o desempenho de empresas orientais. Como dissemos, há muita literatura a respeito. É, sim, intenção deste trabalho ressaltar os pontos que têm impedido o próprio progresso nas mudanças das organizações.

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